Inteireza


Luciane Bernardes

Hoje quando acordei, eu lembrei da Karina e me deu uma saudade! Teve uma vez que ela me deixou na mão...
Estava tudo planejado para a nossa viagem. Iríamos ficar quatro dias em São Paulo para um Congresso. Eu adorava São Paulo. Uma cidade que funciona nas vinte e quatro horas do dia e que apesar do tamanho é acolhedora. Minha amiga Karina e eu nos conhecemos na faculdade, logo depois de formadas seguimos o nosso interesse pela educação infantil. Nós duas viramos diretoras de pequenas escolas dedicadas a primeira infância. A viagem com ela era sempre muito divertida. Nós duas tínhamos muitas coisas em comum. Acontece que na última hora ela teve um imprevisto, impossível ir comigo. Pensei em desistir. Eu tinha uns trinta e cinco anos e nunca tinha viajado sozinha.
Minha terapeuta me convenceu que seria uma oportunidade importante para eu exercitar minha autonomia. Após quinze anos de casamento, meu marido e eu estávamos com nossas identidades misturadas. A terapia familiar era um recurso para evitar a separação. Nós estávamos em um processo bonito de resgate. Redescobrindo do que cada um gostava, para desta forma sermos melhores juntos. Fiquei com muito medo de ir sozinha, como seria isso? Mas decidi me desafiar e no dia marcado embarquei para a cidade da garoa.
Cheguei no hotel na região da Paulista com o coração na boca, mas ao mesmo tempo, me sentindo orgulhosa do feito. O hotel ainda não estava liberado para o check-in, deixei as malas e sai para caminhar. Encontrei uma igreja e entrei. Me senti em casa. Na entrada reconheci a imagem de Santa Rita, minha santa de devoção. Nesse momento tive um insight da mão de Deus na minha vida. Um sentimento de pertença me invadiu, algo meio indescritível, que tem a ver com a minha identificação naquele templo católico. Isso é muito forte em mim, desde a infância. Estava começando a missa. Assisti e depois fui almoçar. Me sentia forte e audaz. A comunhão me ajudou nisso.
O congresso iniciaria no dia seguinte, então decidi ir ao cinema no fim do dia. Consultei o hotel para ver a programação, me arrumei, chamei um táxi e fui ao cinema. Que incrível que foi! Parece bobagem, mas foi libertador. No dia seguinte decidi ir ao teatro e assim foi durante os quatro dias, me fiz companhia. E foi uma companhia de cura.
Essa experiência me fez viver um papel que eu não estava acostumada, mulher sozinha. Aliança no dedo, mas naquele espaço, sem nenhum homem ao lado. Pude reparar nos olhares de canto de olho das outras mulheres. As vi observando a minha roupa. Senti que de alguma forma elas se sentiam ameaçadas pelo fato de eu estar ali sozinha. E pensei: quantas vezes eu julguei do mesmo jeito? Quantas vezes eu vi em outra mulher uma rival? Porque isso? Essa insegurança que nos plantam desde que abrimos os olhos para o mundo! Eu só querendo assistir o filme ou a peça, ou até mesmo jantar. Focada em mim. Mesmo assim de alguma forma eu era uma ameaça.
E eu tenho tantas amigas solteiras! Porque sentir-se assim? A própria Karina, era uma mulher livre, arrebatada, que não tinha medo de viver as suas paixões e eu adorava isso nela. Doze anos que nos despedimos, vivemos juntas até o final, quando a leucemia tirou dela todas as forças. As amigas nos mostram vidas possíveis. Ela fez isso com tanto amor e ao mesmo tempo cuidava para que eu não me desviasse do caminho que ela sabia que era meu. Era ela a me ouvir. A me entender e a me dizer que meu marido me amava e que valia a pena lutar pelo nosso casamento.
Descobri uma coisa muito importante, cada um carrega o outro dentro de si, aonde quer que vá. A saudade reaqueceu a nossa vontade de estarmos juntos. Quando eu cheguei estavam todos em ordem, os filhos bem cuidados e o marido feliz por mim.
Depois disso, aprendi a ser feliz sozinha. A ir no cinema, a comprar roupas, a almoçar e jantar solita, sem mais ninguém. Gosto dessa solidão transitória.
Tem uma música do Jota Quest que diz assim: Viva todo seu mundo, curta toda a liberdade e quando a hora chegar, volta, porque o nosso amor está acima das coisas deste mundo...
Fizemos dessa música nosso hino durante muito tempo. Entendemos que não éramos duas metades; éramos inteiros e pensamos que a inteireza é uma prerrogativa do amor. Apesar de tentar nos ensinarem o contrário. Não dá para botar na conta do outro nossos pedaços faltantes.


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Luciane Bernardes

E-mail: lukbernardes@gmail.com

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