Presente póstumo


Luciane Bernardes

Quando Antônia acordou no sábado, percebeu que estava tonta e confusa. Olhando para os lados, levou três segundos para entender que estava em um lugar muito estranho. Abriu a porta, caminhou pelo corredor, desceu uma grande escada. Parecia um daqueles casarões antigos. Chegou à sala e rumou até a porta principal. Quando a abriu, sentiu suas pernas amolecerem. O cenário era de um filme antigo. Carros pretos circulando pelas ruas, carroças e carruagens disputando espaço com os automóveis e os pedestres. Um caos surreal. Já tinha visto algo parecido... uma foto da avó. Datava de 1920 e fazia parte do acervo familiar.
Ficou parada na porta por algum tempo. Notou que algumas pessoas começaram a lhe observar. Ficaram paradas em frente ao portão da casa que ficava bem próximo à calçada. Fechou a porta por instinto. No hall havia um lindo espelho vitoriano. Contemplou sua imagem, cabelos platinados, boca muito vermelha, vestido de renda longo, extremamente decotado, revelando parte dos seios, e com uma fenda na perna. Pelo rasgo, contemplou suas pernas torneadas e definidas por horas de treinos. Na mão, sapatos vermelhos de verniz, salto 18. Lembrou que havia comprado para a festa à fantasia. Sua produção era de bruxa sexy. Depois da insistência de uma amiga, resolvera investir em um modelito para causar impacto no ex-marido, já que ele iria na festa com a nova namorada.
Sem querer mostrar muito a roupa, espiou a rua mais uma vez, sacudiu a cabeça e pensou: e agora? Será que havia caído em uma brecha do tempo? Estava confusa. Sua avó havia lhe dito que as mulheres da família possuíam um dom especial. Ela perguntava qual era. A avó dizia que um dia ela descobriria por si própria. Era isso então? Viajar no tempo?
— Sim, é isso mesmo que você está pensando — disse a desconhecida que surgiu do interior do casarão. Ela tinha traços familiares. Devia ter uns trinta anos, era muito bonita. Seu olhar...
— Meu Deus, me ajude, eu estou em um sonho ou coisa do tipo? Minha cabeça dói, eu sinto dores no corpo inteiro. Ontem não bebi tanto assim. O que houve?
— Olhe bem para mim, veja se me reconhece...
— Essa voz, esse olhar... Vovó? — Ela pensou que tinha enlouquecido de vez!
— Sim, euzinha, mais jovem e com muitas coisas para te contar — disse rodopiando na ponta dos pés e fazendo uma reverência bem a sua frente.
Ela pegou a neta pela mão, a conduziu pela grande sala do casarão e as duas sentaram no sofá azul celeste de veludo. Tinham à frente uma bandeja de prata elegantemente arrumada e pousada sobre a mesa de madeira de lei.
— Vamos tomar um chá, assim você vai se sentir melhor.
Sentada, não conseguia tirar os olhos dela, era difícil reconhecê-la como avó. Jovem demais para isso.
— Eu sei, é confuso demais para entender, mas aos poucos você vai se acostumar com as viagens e verá que os efeitos indesejados serão menores. A dor de cabeça é por isso.
Antônia olhou bem para aquele rosto, reconheceu o olhar da avó. Quis tocá-lo. Levou a mão, passou na pele que parecia macia como o veludo no qual estava sentada. Se emocionou, uma lágrima escorreu em seu rosto assustado e incrédulo.
A avó lhe serviu o chá, ela se acomodou melhor no sofá e saboreou a bebida quente com aroma de maçã e canela. Foi se sentindo mais acolhida, o corpo foi amolecendo e relaxando. Ela olhou para a jovem avó e perguntou:
— Como isso acontece? Eu não consigo entender.
— É um mistério sem explicações racionais. Não tente compreender, apenas aceite como um dom. Assim será mais fácil. Porque se você rejeitar, o dom se transformará em chicote e lhe açoitará por toda a eternidade.
— Mas eu gosto da minha vida. Eu só quero voltar para aquela festa, voltar para a minha casa e acordar na ignorância de tudo que está acontecendo.
— Sinto muito, meu amor, isso não é possível. Depois que tomamos conhecimento de algo, não retornamos ao estágio anterior. Fostes visitada pela luz da sabedoria. Isso é benção, ou maldição. A escolha é tua.
Tudo parecia uma mensagem cifrada, com questões difíceis de resolver. Nascida sob o signo de Capricórnio, gostava de ter os pés fixados na realidade, e agora isso. Sentia-se desestabilizada, sem controle. Algo que odiava.
A avó parecia conhecer seus pensamentos:
— É hora de perder o controle e entregar ao universo o teu destino. A vida está te entregando um presente. Vamos subir, você toma um banho relaxado, pensa um pouco e voltamos a conversar. Certo, mon chéri?
Ela não tinha forças para negar, quem sabe um banho melhoraria suas ideias. Sempre que precisava pensar tomava banhos demorados. Era um rito conhecido.
O banheiro era um verdadeiro quarto de banho. Grande, com uma linda banheira no centro. Um ambiente cheiroso e sofisticado como poucas vezes tinha visto. Despiu-se e entrou na banheira. Lá ficou por uma hora.
Saiu e envolveu-se em um roupão aveludado. A avó a esperava no quarto ao lado. Um conjunto de grandes poltronas cintilantes compunha a decoração do quarto digno de uma princesa. Sentaram-se nelas. A avó então começou:
— As mulheres da nossa família, quando completam trinta e oito anos, são iniciadas na viagem no tempo. Então preste atenção e tente guardar o que agora eu vou lhe dizer...
Antônia sentiu o coração disparar.
— Estou prestando a atenção. Pode falar.
— Lembre-se: você tem um dom especial e ao mesmo tempo contraditório. O tempo pode ser o seu céu ou o seu inferno. Depende do jeito que você lida com ele. Ele é um juiz implacável que coloca tudo no devido lugar.
E continuou:
— Nunca perca tempo com vinganças, seu dom não é para isso. Use-o para o bem. Cuidado com o efeito borboleta, o que fazemos ressoa no universo inteiro.
Sentou-se mais perto e, quase num cochicho, continuou:
— Você pode voltar no tempo, mas essa não é a melhor parte! Bom mesmo é viver o dia reparando nos detalhes e nas pequenas felicidades. É disso que a vida é feita.
Fez uma pausa dramática e seguiu...
— Você pode mudar o passado, mas use isso com moderação! Apegue-se no hoje, não é à toa que se chama presente.
Em relação aos outros, aconselhou:
— Seja gentil sempre, não deixe que os outros roubem a sua paz. Ame seu corpo e a sua história, a beleza é efêmera o que fica é a essência. Não se preocupe demais com a opinião alheia. Conecte-se de verdade com as pessoas, com a natureza e com a espiritualidade. Esforce-se de verdade para ter grandes amores, primeiro pela vida, depois por tudo que Deus colocar ao seu alcance. Isso vale para as pessoas, os bichos e as flores. Se entregue e confie, e assim o amor virá te visitar. Você vai se quebrar algumas vezes, mas a vida sempre compensa! Viva intensamente, a vida é muito curta para ser pequena...
O som do telefone começou a ficar estridente. Cada vez mais alto, ela queria continuar ouvindo o que a jovem avó dizia. A voz foi ficando cada vez mais longe.
Até que ela acordou e levantou o telefone.
— Alô?
¬— Oi, Antônia. — A voz de seu pai parecia trêmula e triste.
— O que houve, pai?
— Sua avó Sophia faleceu essa madrugada. Estava no casarão com a cuidadora. Só ficamos sabendo agora.
Ela sentou na cama, ficou muda por um tempo. E deixou as lágrimas escorrem sem controle sobre o rosto recém-acordado. Estava triste, mas ao mesmo tempo sentia-se presentada.

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Luciane Bernardes

E-mail: lukbernardes@gmail.com

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